Quando mo ofereceram não cabia em mim de contente. Um papagaio verde, que falava. Antes que me fosse entregue, fui a correr comprar um poleiro próprio para papagaios na primeira loja de animais que encontrei: um T com uma corrente e dois recipientes em cada ponta do traço do T.
No primeiro dia, não dizia nada. "Olha que o gajo fala pelos cotovelos" garantira-me o casal meu amigo de partida para a Austrália. "E às vezes até diz um palavrãozito ou dois", gracejou a medo a Joana.
- Ah é? - respondi eu. Vindo de quem vinha, dificilmente imaginaria que as provocações em vernáculo da palradora ave fossem muito além de sonoros "ó louro dá cá o pé" ou então "olha lá ó paspalho!", ou, na mais escabrosa das hipóteses um "desolha, ó pintas!". Mal sabia eu.
É sempre ao terceiro dia que ocorrem fenómenos determinantes na existência humana.
Foi então que o papagaio resolveu dissertar em velocidade e variedade sobrepondo as mais alarves e inconcebíveis avaliações sobre anatomia humana com classificações multigeracionais
de género tipo e feitio sobre todo e qualquer transeunte que passasse.
O rol de impropérios incluia mimos do tipo "tens cá uma máquina de cagar!" e "pokeralhopókeralho...!croac!....dassse....!croac!...vaituókamelovaitu...!croac!" , etc.
Precipitei-me para a varanda e consegui arrancar o conjunto poleiro/papagaio para dentro da sala, entornando no acto sementes de girassol e água na alcatifa no exacto momento em que uma chusma de aleivosias eram cuspidas envolvendo as dimensões do aparelho genital do Sr. Barros, sapateiro aposentado, e a indiscrição da dona Lurdes, do lugar.. Olhei a ave fixamentemente no olho direito, era o que estava a olhar para mim na altura, reparei nas penas encrespadas no pescoço e mumurei-lhe em surdina entredentes : "Ouve uma coisa, ó meu grandessissimo papagaio dum cabrão. Se voltas a dizer um palavrão, caralho, UM PALAVRÃO que seja, garanto-te que te enfio no frigorífico durante uma semana.
"Tábémtábém !croac!" respondia desdenhoso. "OUVISTE???", berrei encostando os dentes semicerrados à fronha do pássaro. Ele disse que sim que sim que tinha ouvido.
Saí para trabalhar descansado. Quando voltei não queria acreditar. À entrada do prédio tinha um comité de recepção constituido por dois policias, a porteira do lado e o administrador do meu prédio. Duas freiras e um cauteleiro fechavam o conjunto. Resumindo:
Após a minha saída, o papagaio voltou à carga e despejou durante horas todo o tipo de impropérios possíveis e imaginários. As freiras, conduzindo um grupo de crianças órfãs a caminho da praia, decidiram chamar a polícia face às bestialidades gritadas pelo pássaro, as quais, além de dissertações alucinantes sobre a anatomia dos personagens do presépio, incluiam detalhadas descrições dos hábitos sodomitas de certos pinguins.
O cauteleiro, que passava por ali por acaso, ficou pregado ao chão a ouvir o papagaio. "O papagaio é seu?" perguntou-me. Respondi-lhe que sim. "Juro-lhe" afiançou-me ele, "que nunca ouvi um papagaio berrar palavrões daquela maneira! E o que ele dizia... E se eu tenho viajado pelo mundo!" disse olhando com espanto as copas das árvores do outro lado da rua.
Forneci os meus elementos de identificação à Polícia para "dar provimento à queixa".
"De quem", perguntei eu? "De toda a gente", repondeu o polícia olhando-me com ar triunfante.
Pedi desculpa a toda a gente, garantindo que aquilo jamais voltaria a acontecer após o que subi devagar os degraus da escada até ao meu apartamento, no 1º andar. Meti a chave à porta devagar, possuído por um sentimento de ódio gelado e sede de vingança como nunca na vida sentira. Fechei a porta atrás de mim com cuidado, como se não quisesse acordar ninguém e dirigi-me furtivamente à varanda. Agarrei no papagaio/poleiro e trouxe o conjunto para dentro.
Nem me atrevi a olhar para baixo, de onde vários pares de olhos me fitavam.
Corri as cortinas, agarrei no papagaio, soltei-o da corrente que o prendia ao poleiro e, enquanto me encaminhava para a cozinha dizia-lhe, martelando sincopadamente cada sílaba: "Es-tás-fo-di-do-meu-ca-brão"
"No frigorifico? Nãããã. Vais mas é para o congelador!" Abri a porta da arca vertical escolhi a gaveta menos cheia, enfiei lá o papagaio fechei a gaveta com força e bati com a porta gritando" É PARA APRENDERES".
Servi-me de uma dose generosa de Bushmills, juntei-lhe um pouco de água fria, acendi um cigarro e fui calmamente até à sala. Liguei a televisão e decidi alienar-me do mundo durante o tempo daquele cigarro.
À medida que os minutos passavam, o cigarro e o whiskey desapareciam, a calma regressava devagar, como folhas secas a poisar no chão a seguir a uma inexplicável rabanada de vento.
Comecei a sentir um ligeiro desconforto ao imaginar o papagaio trancado no congelador. O desconforto transformou-se rápidamente num saco de remorsos pesadíssimo. Levantei-me e libertei o bicho do seu castigo, trazendo-o para a sala embrulhado numa toalha de cozinha.
Comecei a enxugá-lo devagar e, a pouco e pouco, as tremuras de frio foram desaparecendo, enquanto conversava com ele e lhe tentava explicar que não se pode andar a dizer palavrões a toda a gente, a insultar as pessoas que passavam na rua, que era muito feio, enfim as parvoeiras que se costumam dizer a um papagaio de que se gosta e que se portou mal. A tudo ele dizia que sim, acenando com a cabeça e evitando, a todo o custo, olhar-me nos olhos. De seguida poisei-o no chão e observei-lhe as penas exofradas da nuca enquanto ele se afastava bamboleante, como um pirata de perna de pau. De um salto poisou no braço da poltrona à minha direita e ali se deixou ficar, encolhido. Minutos depois, poucos, dois ou três, salta para o chão e dirige-se na minha direcção. Mantive-me quieto, na expectativa. De súbito senti que me estava a puxar pela bainha das calças. Soergui o tronco e olhei para baixo. O papagaio acenou-me com a cabeça como que a dizer para me aproximar. Debrucei-me na sua direcção e ele, acenando com a cabeça em direcção à cozinha, perguntou-me com voz rouca e muito baixinho: "O que é que fez o frango?"
sábado, julho 30, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
AHAHAHAHAHA... que desfecho, bolas!
Muito bem contada, esta "história"!
Que texto divertido! Ri-me a bom rir. Para lá disso os meus parabéns pela qualidade da prosa, coisa cada vez mais rara nos dias actuais.
CROAC!
HAHAHAHAHAHA
Uma boas gargalhadas sabem sempre bem.
:))) Delicioso!
Enviar um comentário