sábado, março 25, 2006

Histórias de encantar VIII

O meu irmão Jaime, no seu percurso alucinado a que os nossos pais eufemisticamente chamavam vida e que, segundo eles, ele devia mudar o mais depressa possível sob pena de se ver em severos apuros existenciais e, quiçá, a contas com a justiça, tinha um amigo cujo nome nem ele nem nós jamais soubemos mas que era conhecido pelo Rôsca.
O Rôsca aparecia lá em casa de vez em quando, normalmente nas vésperas de programas mais ou menos obscuros com objectivos inconfessáveis mas que eram considerados pelo meu irmão Jaime como rituais necessários à inevitável passagem à idade adulta.
Certa noite os meus pais tinham ido ao cinema e, bem depois de jantarmos, o Rôsca apareceu num estado lastimável. Parecia que tinha sido atropelado por uma enceradora a diesel, tal não era a quantidade de rasgões na roupa e feridas sangrando, tudo embrulhado num fedor nauseabundo a gasóleo e naftalina.
- Então pá? Que foi que te aconteceu? - indagou meio assustado e meio irritado o meu irmão Jaime perante a frustrante perspectiva de não ter sido convidado para mais um programa de culto viril mas simultaneamente vergonhosamente satisfeito por não ter tido que partilhar com o Rôsca violência semelhante.
- Foi há bocado..-começou o Rôsca em voz baixa.
- Fui ao armazém do outro lado da praceta, nas traseiras dos prédois, e como vi que tinham deixado a janela aberta tentei escapulir-me lá para dentro a ver se conseguia sacar alguma coisa.
Assim que pus os pés no chão ouvi uma vozinha esganiçada a dizer-me assim: "jesus está-te a ver, jesus está-te a ver".
Fui habituando os olhos à escuridão e a vozinha continuava "jesus está-te a ver, jesus estáte a ver".
- Jesus está-te a ver ?- perguntou o meu irmão Jaime aos urros, reforçando com desdém o está-te.- Jesus está a ver-te, caralho! Nem sabes falar português, meu cabrão!- rematou triunfante, ciente como estava que o facto de não ter participado em tal raid, obviamente fracassado, lhe dava um ascendente imediato sobre a condição de macho derrotado que transparecia em todo o quadro visual e auditivo apresentado pelo malogrado Rôsca.
- Olha lá ó esperto: eras tu que estavas lá?- retorquiu o Rôsca de semblante carregado.
- Caga no gajo. Continua lá a contar. - disse-lhe eu.
- Bom. Então foi assim. A certa altura consigo perceber que a vozinha vinha de dentro dum papagaio que estava empoleirado num poleiro daqueles que parecem um T, estão a ver, com uma cena de zinco em cada ponta, uma com comida numa ponta e uma com água na outra ponta e o gajo estava empoleirado, estão a ver, ao meio do T, em cima daquela merda e a dizer-me aquilo do Jesus e tal. E eu disse-lhe assim:
- Olha lá. O teu dono deve ser um grandessissimo paneleiro para chamar Jesus a um papagaio.-disse-lhe eu.
- Isso não é nome de papagaio nem é nada. E o que é que tu queres? Queres levar com esta vassoura pelos cornos abaixo?- disse-lhe eu outravez enquanto agarrava numa vassoura que estava ali ao pé. E vai o papagaio e vira-se para mim e diz:
- Não me chamo Jesus. Chamo-me Jacob. Jesus é como o meu dono chama ao rottweiler que está deitado aí atrás de ti.
- A próxima coisa que me lembro é de estar a tocar à campainha da vossa porta.

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