sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Histórias de encantar VIII

Numa tasca à tarde, no largo de uma aldeia alentejana, um velho enrola-se e esfrega as mãos em volta dos cotovelos nus encostado ao balcão.
- Mais um...!- urrou para a porta escura entreaberta na parte detrás do balcão. Outro velho menos velho que o primeiro assomou-se à porta e disse:
- Pôceras ti Jaquim! Vomecê hoje tá danado! Olhe que ainda tem que ir para casa e da maneira que está despachando bagaços tem que ter cuidado. É o quarto e último!
- Cala-te e avia-me mas é...- rosnou o velho enquanto insistia em retirar um estreitíssimo Definitivos do maço encardido e amachucado. -...que esta vida é uma puta e um gajo tem que se arrimar a ela enquanto tiver tesão. Depois acabou-se!
- Atão mas diga lá o que se passa, homem! Vomecê sempre bem disposto e agora anda para aí com uma cara que até parece sei lá o quê.
- Eh pá. É a nha Maria, pôceras. Já não me consigo chegar a ela a tempo. As mais das vezes quando estamos no campo e sinto vir aquela febre que dá vontade de agarrá-la toda e deitá-la ao chão, tás a perceber, quando a chamo e ela vem ter comigo já a puta da tesão se me foi.
- Mas olha que isso tem remédio.- ouviu-se dizer do fundo mais escuro da tasca.
Ti Jaquim rodou lentamente o corpo franzindo a fronha e prescrutando o ar carregado de cheiros vários e aromas abrangentes que iam do presunto no fumeiro às cebolas passando pelo tabaco, álcool, suor, merda, e ervas de cheiro de onde se destacavam os orégãos.
- Agarras na espingarda e combinas c'a m'lher que quando ela ouvir um tiro está na hora. Verás vê-la aos saltos e cangochas por essas arceadas de saias arregaçadas na pressa de ir ter contigo.
Ti Jaquim ergueu o copo na direcção da voz e tragou o quarto e último bagaço. - Não é tarde nem é cedo. Vou-me embora que amanhã é outro dia.
O tempo foi passando e Ti Jaquim tardava em aparecer, ocupado como andava aos tiros pr'ó ar na caça da sua Maria.
O Outono chegou à tasca e com ele o Ti Jaquim.
- Avia-me um penalte de bagaço e é para já!- vociferou batendo com força com a palma da mão esquerda no balcão.
- Eh pá, ó Jaquim! Então agora é todo duma vez por modos dos que não bebeste, não? E a Ti Maria? Tá boazinha de sal ou nem por isso?
- Atão e não é que a coisa resultou mesmo? - respondeu o velho. -Havia dias que me deitava sem ceia, tão derreado que ficava.
- Atão e agora? acabaram-se a pilhas?
-Não pôrra! A gaita é que abriu a caça, tás a perceber? e o raio da m'lher não pára em casa!

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