sábado, agosto 25, 2007

Canícula

Quando era puto, o Alentejo era enorme no Verão. Era impensável percorrê-lo de bicicleta, e o próprio acto de imaginar isso adquiria foros de arrogância indesculpável. Isso era só para os tipos da Volta, uma seita de alienígenas que viviam em tocas o ano todo e que, de repente no Verão, enquanto toda a gente ia para a praia deixando Lisboa entregue aos pombos, desatavam a pedalar furiosamente Lusitânia fora envergando camisolas de clubes de que nunca se ouvia falar durante o resto do ano como Flandria, Sangalhos, Caves Messias, e o camandro.
Sempre que se mencionava um episódio de doping nas equipas do Benfica ou do Sporting a culpa era normalmente da mistela inclusa no Sumol ou na Laranjina "C" oferecidas, invariávelmente por adeptos do Sangalhos, aos corredores durante a prova.
Ininterruptamente perseguidos por enxames de veículos atestados de ébrios e cravejados de componentes velocipédicos, amavelmente acompanhados por escolta motorizada da GNR, circulavam a velocidades inconcebíveis atingindo mais de 120 km por hora na descida de algumas serras em várias ocasiões. Este fenómeno, entusiásticamente emoldurado no percurso por hordas de apoiantes indefectíveis, de fato de banho à borda da estrada, aproveitando o acontecimento, o local e o momento para soltarem os impropérios que lhes dessem na real gana mandando tudo para o caralho enquanto batiam palmas convencendo toda a gente que apoiavam os corredores, merecia honras de abertura no Telejornal a preto e branco, anunciado por um batedor de ovos que nunca entendi porque aparecia. Os lugares na primeira fila, perto das meta que se sucediam no final de cada etapa, eram os mais disputados visto serem os melhores para a prática do afinfar-cachação a eito e a preceito no lombo, ou onde calhasse, dos ciclistas en passant, à laia de empurrão, saudação ou incentivo.
Era por esta altura que o céu abrasador do Alentejo se cobria de nuvens e que caía uma chuva miudinha que fazia saltar para o ar o cheiro da terra com toda a força. As voltas à Casa Pequena na Vilar azul requeriam novas manobras de perícia acrescida tendo o piso adquirido vida e feitio próprios, tornado escorregadio e ganhando sulcos que se enchiam depressa com água cor de galão.
Era a canícula, diziam.

1 comentário:

Anónimo disse...

Portugal está a encolher. Hoje atravessa-se o País de Norte a Sul em cerca de cinco horas (cumprindo os limites de velocidade), pelas auto-estradas construídas com dinheiro dos cofres de Bruxelas. Mas que nós, em nome do princípio do poluidor pagador continuamos a pagar às concessionárias rodoviárias.

O calor também já não é o que era. E quando é, corta-se com o ar condicionado das viaturas com mais cavalos do que cavalgaduras.

Hà que saudades do 2CV!

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