quinta-feira, dezembro 01, 2005

Na praia

É sempre com espanto que o puto olha para trás e vê as pegadas dele próprio que o perseguem sempre na areia húmida da maré que vaza. O puto devolve o olhar dele ao horizonte longínquo do fim da praia, esperando ver mais coisas que o façam andar para a frente, para além dos restos das armações da apanha da conquilha, redes velhas cheias de limo, conchas vazias, areia e água salgada, das carcaças de caranguejo ocas, da areia, do sol e do mar.
"Aqui é o fim do meu país" pensa o puto imaginando um mapa de Portugal com a fronteira água-terra muito bem definida, geométricamente delineada separando a terra de um mar parado, morto, imóvel, sem marés, sem correntes, sem nada.
O puto tem quinze anos, feitos hoje, e na mão leva amarrotada a carta que o pai lhe escreveu de França a congratulá-lo por esse dia que era importante. O puto continua o seu caminho, perseguido pelas pegadas que vai fazendo na areia húmida da maré que vaza. Olha para a direita e vê o ondular das dunas que o vêm acompanhando neste passeio solitário. Guina à direita e escolhe um sítio. Abre um buraco fundo, do tamanho do seu braço direito magro, queimado do sol e manchado de sal. Segura na carta e memoriza-a. Não o texto mas a textura. O papel amarrotado, manchado de tinta borrada da água salgada. Deposita a carta no fundo do buraco e vai tapando tudo com areia seca, macia e branca. No fim tem a certeza que se voltar à ilha dali a um ano, dez, vinte, jamais achará o lugar onde a carta escrita pelo pai, importante portanto, estará guardada. Assim tem a certeza de que jamais a poderá rasgar.

2 comentários:

riacho disse...

Eu tenho quase a certeza que se um dia ele voltar à tal praia, os olhos do puto agora adulto vão perscrutar essas dunas duma ponta à outra na ânsia duma pista que o leve a destapar o passado.
Um grande abraço, D. Afonso.

Sofia disse...

Eu acho que não. Com aquele passado, é demasiado difícil construir um futuro bom. O desencontro com o passado, às vezes, torna possível um futuro melhor. Um Natal cheio de paz, D. Afonso.

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