terça-feira, dezembro 06, 2005

Histórias de encantar VII

Era uma vez uma aldeia perto de Macedo de Cavaleiros, há muitos anos atrás. O pároco da aldeia, criatura espartana, seco de carnes e de hábitos sóbrios, nutria um estonteante, desmesurado e profundo ódio pelos vizinhos castelhanos. Ódio esse que nada tinha de surdo. Antes pelo contrário. Em cada palestra, em cada homilia, fosse em latim ou em português, o pároco da aldeia não perdia a oportunidade para demonstrar com a irrefutabilidade própria da obsessão, a certeza característica das grandes fés e a objectividade inegável do senso comum que a grande culpa dos males na terra, sobretudo na parte do reino d'el-Rei que circunscrevia Macedo de Cavaleiros, era do castelhano. Umas vezes disfarçado de mafarrico, outras de cabra montês, houve inclusive quem o tivesse vislumbrado encarnando um onagro entesado e enlouquecido perseguindo virgens p'las enconstas das serranias, o castelhano era em si mesmo a criatura mais abjecta que, por artes de distração, vingança ou ironia, Deus alguma vez pusera neste mundo, numa punição feroz a homens e natureza.
Esta estima avessa pelo castelhano, avatar do demo, chegou aos ouvidos do bispo que, além de remotos laços de parentesco com castelhanos ainda colectava rendas em olivais da Galiza. Indignado, o bispo resolveu ir, ele próprio, assistir a uma prelecção do pároco na primeira missa do mês seguinte, visto terem-lhe dito que na primeira missa de cada mês a expressão do ódio insano do pároco ao castelhano, que o consumia e que, simultâneamente, o equipava com uma inabalável energia e vontade de viver, adquiria foros de exorcisão catártica tal não era a verborreia ininterrupta devidamente acompanhada por exuberante pantomina e enquadrada em modesta cenografia montada a preceito pelo sacristão, figura sinistra e omnipresente.
Se hoje em dia acautelar segredos é difícil, naquela altura em que ainda não haviam debates para as presidenciais na televisão e o Vitória de Setúbal era um homossexual chamado Henrique que explorava um bordel montado nas ruínas romanas de Tróia onde não faltavam um frigidarium um tepidarium e, inclusive um caldarium sobre hipocaustum, naquela altura, dizia eu, agir em segredo era proeza ao alcance apenas de grandes estrategas militares. Resumindo: o sempre bem informado sacristão soube da marosca, disseram-lhe que o bispo iria assistir, ele próprio, à próxima missa disfarçado de ceifeira alentejana. O sacristão disse logo que isso era uma estupidez porque o bispo assim disfarçado seria imediatamente descoberto. O staff do bispo optou assim por disfarçá-lo de artesão. O pároco, avisado, tomou todas as providências para que em tudo o que dissesse e fizesse não deixasse transparecer o menor vestígio que pudesse conduzir a uma acusação de difamação contra os vizinhos castelhanos. Estava fora de questão qualquer manifestação cénica a acompanhar a homilia desse dia.
A certa altura da missa, dita de forma sóbria e irrepreensível, o pároco dissertava sobre a última ceia e tudo o que se passaria a seguir. As suas palavras, proferidas com uma fortíssima pronúncia bracarense, foram estas: "E Jesus, de semblante carregado, olhando em torno da mesa onde partilhava o pão e o vinho com os seus apóstolos disse:
- Em verdade, em verdade vos digo, que esta noite serei preso, torturado, humilhado, insultado e crucificado.
- Nunca! Nunca! Nunca!- bradaram desesperados, repetidamente e em uníssono os apóstolos. - Jamais o permitiremos!- gritaram.
- Calem-se, estúpidos! Deixem-me falar! - retorquiu o senhor, visivelmente agastado.
Nesta altura o bispo não se conteve e murmurou esconjuras em surdina enquanto se remexia inquieto no banco corrido da primeira fila. Jesus a chamar estúpidos aos apóstolos! Onde é que já se viu!
"- E tudo isso acontecerá - continuou Jesus olhando em volta da mesa na cara de cada um dos seus atónitos apóstolos, - porque um de entre vós me traiu. Sim! um de entre vós, por um miserável punhado de moedas de prata, cometeu a infâmia de me trair. Serei entregue por um de vós. - E com estas palavras calou-se Jesus, com os olhos marejados de lágrimas fixos em Judas.
Ao ver-se confrontado com o semblante triste de Jesus, o torpe, indigno e infame Judas, essa criatura dos infernos, indigna de viver, de respirar o nosso ar e de partilhar esta terra connosco, não se conteve e perguntou-lhe: - Pero Jesús, por que me miras así?"

2 comentários:

Talk Talk disse...

Já conhecia a anedota, mas aqui está contada de forma sublime.
Um abraço.

J.P. disse...

Fenomenal. Eu também já a conhecia, mas tu deste-lhe um encanto fantástico.
Parabéns !
Um abraço.

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